Este artigo analisa a relevante decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, proferida no Recuso Especial nº 2198744 – MG. Nela, reafirmou-se o entendimento sobre a aplicação do concurso material de crimes nas condutas de embriaguez ao volante e lesão corporal culposa na direção de veículo automotor. Essa distinção é vital para a correta individualização da pena e a efetiva responsabilização dos infratores, com profundo impacto na segurança viária e na proteção de bens jurídicos essenciais. Ao reformar um acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), o STJ consolida a compreensão de que, mesmo em um mesmo contexto fático, condutas autônomas que tutelam bens jurídicos diversos e se consomem em momentos distintos devem ter suas penas cumuladas.
A controvérsia jurídica que levou à intervenção do STJ teve origem em um caso envolvendo um motorista em Contagem (MG). A pessoa foi acusada de conduzir seu veículo sob a influência de álcool, ou seja, com sua capacidade psicomotora alterada. Em um desdobramento dessa conduta inicial, ele avançou um cruzamento sem respeitar uma placa de parada obrigatória, colidindo com outro automóvel e causando ferimentos em três dos quatro ocupantes.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais havia interpretado os fatos como um caso de concurso formal de crimes, sob o argumento de que o acusado, “mediante uma única atitude”, teria incorrido nos tipos penais de embriaguez ao volante e lesão corporal culposa. No entanto, o Ministério Público estadual recorreu dessa decisão, buscando o reconhecimento do concurso material, o que implicaria uma pena mais severa pela cumulação dos ilícitos.
Para compreender a relevância da decisão do STJ, é fundamental distinguir os institutos do concurso formal e do concurso material de crimes, ambos previstos no Código Penal Brasileiro.
O concurso formal de crimes é disciplinado pelo Art. 70 do Código Penal, que estabelece:
Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.
Em sua essência, o concurso formal pressupõe uma unidade de conduta (uma única ação ou omissão) que resulta em pluralidade de crimes. A sanção, via de regra, é a da pena mais grave, aumentada de um sexto até metade (sistema da exasperação), salvo na hipótese de desígnios autônomos (concurso formal impróprio), quando as penas são somadas.
Por outro lado, o concurso material de crimes está previsto no Art. 69 do Código Penal:
Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.
Diferentemente do concurso formal, o concurso material caracteriza-se pela pluralidade de condutas (múltiplas ações ou omissões) que geram pluralidade de crimes. Nesse cenário, as penas são aplicadas de forma cumulativa, ou seja, somadas, resultando em uma sanção geralmente mais gravosa.
A análise do STJ centrou-se na natureza e nos momentos consumativos dos crimes de embriaguez ao volante e lesão corporal culposa na direção de veículo automotor, ambos tipificados no Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
O crime de embriaguez ao volante é definido pelo Art. 306 do CTB:
Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência: Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
O Ministro Sebastião Reis Júnior, relator do caso, destacou a natureza desse delito:
O crime de embriaguez ao volante consuma-se no momento em que o agente assume a direção do veículo com capacidade psicomotora alterada…
É um crime de perigo abstrato, o que significa que sua consumação independe da ocorrência de um dano efetivo. A mera conduta de dirigir sob influência de álcool ou substância psicoativa, com a capacidade psicomotora alterada, já configura o crime, pois o bem jurídico tutelado (segurança viária e incolumidade pública) é colocado em risco. O risco é presumido pela lei, não necessitando ser provado.
Já o crime de lesão corporal culposa no trânsito está previsto no Art. 303 do CTB:
Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor: Penas – detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Sobre seu momento consumativo, o relator explicou:
…enquanto o crime de lesão corporal culposa consuma-se com a efetiva ocorrência de lesão na vítima.
Este é um crime de resultado, exigindo a efetiva ofensa à integridade física de terceiro para sua consumação. O bem jurídico tutelado é a incolumidade física da pessoa.
A Sexta Turma do STJ, por unanimidade, proveu o recurso do Ministério Público de Minas Gerais, reformando o acórdão do TJMG. O cerne da decisão reside na compreensão de que os crimes de embriaguez ao volante e lesão corporal culposa configuram concurso material e não formal.
O Ministro Sebastião Reis Júnior fundamentou sua decisão explicando que, apesar de poderem ocorrer em um mesmo contexto fático, as duas condutas são autônomas e protegem bens jurídicos distintos, possuindo momentos consumativos diferentes. Em suas palavras:
Os crimes de embriaguez ao volante e lesão corporal culposa possuem momentos consumativos distintos e tutelam bens jurídicos diversos, configurando delitos autônomos.
Ele detalhou essa diferença:
O crime de embriaguez ao volante consuma-se no momento em que o agente assume a direção do veículo com capacidade psicomotora alterada, enquanto o crime de lesão corporal culposa consuma-se com a efetiva ocorrência de lesão na vítima.
A lógica é clara: o motorista, ao ingerir álcool e assumir a direção do veículo, já consumou o crime de embriaguez ao volante. Este é um crime autônomo, de perigo abstrato, cuja existência não depende de um acidente ou lesão. Posteriormente, ao desrespeitar a sinalização e causar a colisão que resultou em lesões às vítimas, o mesmo motorista praticou uma segunda conduta (ação culposa na direção) que consumou o crime de lesão corporal culposa. Portanto, há duas condutas distintas e dois resultados criminosos, justificando a aplicação do concurso material.
A tese de julgamento ficou assim estabelecida:
Os crimes de embriaguez ao volante e lesão corporal culposa na direção de veículo automotor configuram concurso material de crimes, pois possuem momentos consumativos distintos e tutelam bens jurídicos diversos.
Esta decisão reforça a jurisprudência consolidada do STJ, que entende que a condução de veículo automotor com a capacidade psicomotora alterada e a prática de lesão corporal culposa decorrente de uma falha na condução (como desrespeitar a sinalização de trânsito) são condutas que se somam para fins de aplicação da pena, protegendo, assim, de forma mais efetiva a coletividade contra os riscos do trânsito.
Além das implicações na esfera penal, o ato ilícito cometido no trânsito, que resulta em dano a terceiros, também gera responsabilidade na esfera civil. O Código Penal, em seu Art. 91, Inciso I, já aponta para essa consequência:
São efeitos da condenação: I – tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime;
Esta disposição penal harmoniza-se com os princípios gerais do Direito Civil brasileiro, que impõem a obrigação de reparar o dano causado por ato ilícito.
Art. 186 do Código Civil:
Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927 do Código Civil:
Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
No caso concreto, o motorista, ao causar ferimentos em três ocupantes do outro veículo, além de responder penalmente pelos crimes em concurso material, também será civilmente responsável pela reparação dos danos materiais (custos médicos, danos ao veículo, lucros cessantes, etc.) e morais (sofrimento, abalo psicológico, etc.) causados às vítimas. A pluralidade de vítimas implica na pluralidade de obrigações indenizatórias, devendo cada uma ser compensada pelos prejuízos que suportou. A condenação penal definitiva solidifica a certeza do ato ilícito para fins civis, facilitando a demanda por reparação dos lesados.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça, ao determinar a aplicação do concurso material de crimes entre embriaguez ao volante e lesão corporal culposa na direção de veículo automotor, não é apenas uma formalidade processual, mas um posicionamento fundamental para a justiça no trânsito. Ela reconhece a gravidade autônoma de cada conduta e a lesão a diferentes bens jurídicos, garantindo uma responsabilização proporcional à multiplicidade de ilícitos cometidos. A condução sob efeito de álcool já é um crime de perigo por si só, e os danos causados posteriormente, decorrentes de outra conduta imprudente, configuram um segundo crime, justificando a soma das penas.
Este entendimento contribui para a segurança jurídica e serve como um importante balizador para outros tribunais, reforçando a mensagem de que as violações das normas de trânsito, especialmente aquelas que colocam a vida e a integridade física de terceiros em risco, terão a devida e rigorosa resposta do sistema de justiça. A correta aplicação do concurso material nesses casos é um passo essencial para desestimular a impunidade e promover um trânsito mais seguro para todos. Ademais, a condenação penal estabelece o alicerce para a exigência de reparação civil às vítimas, assegurando que os danos sofridos sejam devidamente compensados.
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