A Importância Inegociável da Defesa Técnica no Processo Penal

Em um sistema jurídico que se pauta pela garantia de direitos fundamentais, a defesa técnica no processo penal assume um papel central e insubstituível. A ausência ou a manifesta deficiência dessa defesa pode fulminar todo o processo, gerando nulidades absolutas e, consequentemente, a revisão de atos processuais. O recente cenário jurídico, onde advogados deixam de apresentar peças processuais essenciais, como as alegações finais, e são substituídos por defensores públicos, ilustra a seriedade com que o Poder Judiciário deve atuar para assegurar a observância dessas garantias.

Suprema Corte dos Estados Unidos – Fotografias fotográficas no Unsplash

A Constituição Federal do Brasil, em seu artigo 5º, inciso LV, é categórica ao dispor que:

aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Este dispositivo é a espinha dorsal de todo o processo penal, garantindo que o acusado não seja mero espectador, mas participe ativamente da construção da verdade processual. A ampla defesa não se resume apenas à autodefesa, mas exige, sobretudo, a defesa técnica, exercida por profissional habilitado, ou seja, um advogado ou defensor público. É esse profissional que possuirá o conhecimento jurídico necessário para at manejar os instrumentos processuais e apresentar as teses defensivas de forma eficaz.

As alegações finais representam um dos momentos mais importantes do processo penal. Conforme o Código de Processo Penal, em seu artigo 403, no procedimento ordinário, após a produção de provas:

Não havendo requerimento de diligências, ou sendo indeferido, serão oferecidas alegações finais orais por 20 (vinte) minutos, respectivamente, pela acusação e pela defesa, prorrogáveis por mais 10 (dez), proferindo o juiz, a seguir, sentença.

Ricardo Pinheiro.Ricardo Pinheiro.

Esta etapa permite que a defesa (e a acusação) apresente ao juiz uma síntese dos fatos e das provas produzidas, exponha suas teses, conteste as provas da parte contrária e, fundamentalmente, influencie o convencimento judicial antes da prolação da sentença. A sua não apresentação ou a apresentação de uma peça que não corresponda à sua natureza jurídica, como uma “petição incidental” em lugar das alegações finais, configura uma falha grave na defesa técnica.

Diante da falha da defesa técnica em um ato processual tão relevante como as alegações finais, o processo pode ser maculado por nulidade absoluta. O artigo 564, inciso III, alínea ‘e’, do Código de Processo Penal, prevê a nulidade quando há “falta das fórmulas ou dos termos seguintes: (…) os prazos concedidos à acusação e à defesa”. A inobservância desses prazos para atos essenciais da defesa, por parte do advogado constituído, implica em verdadeira ausência de defesa.

É nesse contexto que se aplica a Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal:

No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu.

A situação descrita, onde os advogados deixam de apresentar as alegações finais (ou as substituem por uma peça inadequada), configura uma verdadeira falta de defesa, e não apenas uma deficiência. A ausência de uma peça que resume e defende o acusado com base nas provas produzidas impede o juiz de ter uma visão completa dos argumentos defensivos antes de sentenciar, configurando um prejuízo evidente e presumido.

Nesses casos, o Poder Judiciário não pode permanecer inerte. O Código de Processo Penal estabelece o princípio da indispensabilidade da defesa, conforme o artigo 261:

Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor.

E, mais adiante, o artigo 263 determina:

Se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz, ressalvado o seu direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação.

Esses artigos impõem ao juiz o dever de garantir que o acusado tenha sempre uma defesa técnica efetiva. Se o advogado constituído falha grosseiramente, como na não apresentação de alegações finais, o juiz tem o poder-dever de intervir.

A atitude de um Ministro do Supremo Tribunal Federal, em um caso de grande repercussão nacional — cujos nomes dos advogados e do Ministro não mencionarei por questões éticas, uma vez que o objetivo desta Coluna é exclusivamente informativo —, ao intimar a Defensoria Pública da União para apresentar as alegações finais após uma possível omissão dos advogados constituídos, é plenamente legítima e amparada constitucionalmente. Trata-se, não de uma “destituição de ofício” arbitrária dos advogados, mas de uma medida necessária para suprir a ausência de defesa técnica, evitando, assim, a configuração de uma nulidade absoluta no processo.

O artigo 265, § 3º, do Código de Processo Penal, recentemente atualizado (Lei nº 14.752, de 2023), corrobora essa interpretação:

Em caso de abandono do processo pelo defensor, o acusado será intimado para constituir novo defensor, se assim o quiser, e, na hipótese de não ser localizado, deverá ser nomeado defensor público ou advogado dativo para a sua defesa.

Embora o cenário descrito não seja um “abandono” no sentido estrito de sumiço do advogado, a apresentação de uma peça que não cumpre a função processual das alegações finais e a perda do prazo podem ser interpretadas como uma falha tão grave que se assemelha à ausência de defesa, ou uma deficiência que causa prejuízo em tal grau que exige a intervenção judicial.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolida esse entendimento:

1. É certo que: “No âmbito dos Tribunais Superiores prevalece a orientação segundo a qual apenas a falta de defesa técnica constitui nulidade absoluta, sendo certo que eventual alegação de sua deficiência, para ser apta a macular a prestação jurisdicional, deve ser acompanhada da demonstração de efetivo prejuízo para o acusado, tratando-se, pois, de nulidade relativa (Enunciado n. 523 da Súmula do STF)” (AgRg no AREsp n. 1.920.189/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 20/2/2024, DJe de 26/2/2024) No caso concreto, observa-se que, apesar de o agravante alegar ter constituído advogado nos autos, o TJPE destacou que, na certidão juntada aos autos, não consta nome nem inscrição na OAB do advogado no documento e, ainda, não houve nenhuma manifestação nos autos do referido patrono. Dessa forma, o Juízo a quo nomeou Defensor Público por ausência de defesa técnica, não havendo se falar em ilegalidade. Registre-se que o agravante não se opôs à atuação da Defensoria Pública em seu interrogatório. (AgRg nos EDcl no HC n. 924.747/PE, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 30/4/2025, DJEN de 7/5/2025.)

1. A mera alegação de cerceamento de defesa ou de violação do direito de autodefesa não é suficiente, pois o prejuízo não pode ser presumido. É necessário apresentar evidências claras de que a apresentação das alegações finais por Defensor Público teria influenciado o julgamento, e que teria ficado o réu indefeso, o que não se verifica no presente caso. .

2. O réu intimado a constituir outro defensor se manteve inerte, razão pela qual a nomeação da Defensoria Pública para atuação se mostra devida, não podendo a marcha processual permanecer refém das partes. (AgRg no HC n. 645.099/SP, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 5/3/2025, DJEN de 11/3/2025.)

A mera apresentação de uma peça processual que não cumpre o rito das alegações finais e a consequente perda do prazo caracteriza uma falha grave na defesa técnica, o que impõe ao juiz a obrigação de agir para assegurar a continuidade do processo dentro da legalidade.

Em suma, a decisão do ministro de intimar a Defensoria Pública da União para apresentar as alegações finais não só é legal, mas é uma medida indispensável para garantir a validade do processo e a proteção dos direitos fundamentais dos acusados. Frente a uma evidente falha da defesa técnica constituída, que poderia levar à nulidade absoluta do processo por cerceamento de defesa, o juiz atua como garante da ordem jurídica e dos preceitos constitucionais, assegurando que nenhum acusado seja julgado sem a devida e efetiva assistência de um profissional do direito.

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