OPINIÃO: A (In)constitucionalidade do Tema 122 do TST, Pacto de Trabalho Doméstico

Artigo/ Opinião por Claudio Manoel do Monte Feitosa

O Tribunal Superior do Trabalho acaba de firmar, através do Tema 122 de Recurso de Revista Repetitivo, uma tese que merece profunda reflexão jurídica e social. Segundo o entendimento consolidado, “a ausência de apresentação dos registros de jornada pelo empregador doméstico gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho alegada na petição inicial, que pode ser elidida por prova em contrário”. Embora aparentemente benéfica à proteção do trabalhador doméstico, tal decisão revela graves vícios constitucionais que não podem passar despercebidos pela comunidade jurídica e pela sociedade.

Claudio Manoel do Monte Feitosa – Foto: Divulgação

A primeira e mais grave inconstitucionalidade reside na violação frontal ao princípio da legalidade estrita, consagrado no artigo 5º, inciso II da Constituição Federal, que estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. A Consolidação das Leis do Trabalho, em seu artigo 74, parágrafo 2º, é cristalina ao estabelecer que a obrigatoriedade do controle de ponto aplica-se exclusivamente aos estabelecimentos com mais de vinte trabalhadores.

Mais relevante ainda é o que dispõe o artigo 12 da Lei Complementar 150/2015, que regulamenta especificamente o trabalho doméstico. Este dispositivo estabelece que “é obrigatório o registro do horário de trabalho do empregado doméstico por qualquer meio manual, mecânico ou eletrônico, desde que idôneo”. Contudo, a própria lei não estabelece qualquer sanção ou presunção para o caso de descumprimento desta obrigação, limitando-se a criar o dever formal sem prever as consequências de sua inobservância.

O legislador complementar, ao tratar especificamente da matéria, optou conscientemente por não estabelecer presunções automáticas em favor do empregado doméstico quando da ausência dos registros. Esta omissão legislativa não foi acidental, mas resultado de cuidadosa ponderação entre a proteção do trabalhador doméstico e as peculiaridades da relação de emprego doméstico. Em nenhum momento o legislador ordinário ou complementar criou a presunção que agora o TST pretende estabelecer por via jurisprudencial.

Ao criar uma presunção baseada na ausência de controle de jornada para empregadores domésticos, o TST está, na prática, criando uma obrigação legal inexistente, usurpando a competência exclusiva do Poder Legislativo para estabelecer deveres e obrigações aos cidadãos. Esta é uma violação direta ao princípio da separação dos poderes, fundamento basilar do Estado Democrático de Direito.

A decisão também ofende gravemente os princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade, especialmente quando confrontada com o disposto no artigo 12 da Lei Complementar 150/2015. Embora esta lei tenha estabelecido a obrigatoriedade do registro de horário para o empregado doméstico, o legislador complementar deliberadamente não criou qualquer presunção automática em caso de descumprimento, demonstrando clara preocupação com o equilíbrio entre proteção trabalhista e as peculiaridades da relação doméstica.

O trabalho doméstico desenvolve-se em ambiente familiar, caracterizado pela informalidade natural das relações, onde a rigidez dos controles empresariais mostra-se inadequada e desproporcional. A natureza das atividades domésticas, muitas vezes flexíveis e adaptáveis às necessidades familiares, torna impraticável um controle rígido de horários semelhante ao exigido em ambiente empresarial. O legislador da Lei Complementar 150/2015 reconheceu essas peculiaridades ao estabelecer apenas a obrigação formal de registro, sem criar mecanismos presuntivos que pudessem desequilibrar excessivamente a relação jurídica.

Diferentemente das relações de trabalho empresariais, o ambiente doméstico possui peculiaridades que não podem ser ignoradas. Exigir de uma família comum os mesmos controles de uma empresa configura clara violação ao princípio da proporcionalidade. O sacrifício imposto ao empregador doméstico, através da presunção de veracidade das alegações do empregado, é absolutamente desproporcional ao benefício pretendido, especialmente considerando que existem outros meios probatórios para demonstração da jornada de trabalho, como prova testemunhal, documental e circunstancial, que não impõem ônus desproporcional ao empregador.

A criação de presunções legais constitui típica atividade legislativa, não podendo ser exercida pelo Poder Judiciário sob pena de violação ao princípio da separação dos poderes. Como bem ensina a doutrina constitucional, o Poder Judiciário deve aplicar a lei, não criá-la. A decisão do TST configura verdadeira criação normativa por via jurisdicional, prática vedada pelo ordenamento constitucional brasileiro.

Esta violação torna-se ainda mais evidente quando analisamos que o próprio legislador da Lei Complementar 150/2015, ao tratar especificamente do controle de jornada doméstica no artigo 12, optou conscientemente por não estabelecer a presunção que agora o TST pretende criar. Se o legislador complementar, com todas as prerrogativas democráticas e técnicas para tanto, não entendeu por bem estabelecer tal presunção, não pode o Poder Judiciário suprir esta lacuna através de interpretação que extrapola os limites da atividade hermenêutica e adentra na criação legislativa.

O Supremo Tribunal Federal já assentou, em diversos precedentes, que a criação de obrigações por via judicial, sem previsão legal, configura ofensa ao princípio da legalidade. A ausência de previsão legal específica impede a criação, por via jurisprudencial, de obrigações não previstas expressamente no ordenamento jurídico. Este entendimento consolidado pela Suprema Corte deveria servir de baliza para todas as demais instâncias judiciais.

Claudio Manoel do Monte Feitosa – Foto: Divulgação

As consequências práticas desta inconstitucionalidade são extremamente graves e violam frontalmente os preceitos constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade, especialmente quando consideramos que a Lei Complementar 150/2015 já estabeleceu um marco regulatório equilibrado para a matéria. A aplicação do Tema 122 gera insegurança jurídica, deixando empregadores domésticos sujeitos a presunções não previstas em lei complementar específica que regulamenta integralmente a matéria. Cria-se uma inversão indevida do ônus probatório que vai além do que o próprio legislador complementar entendeu por adequado e proporcional. Famílias de classe média e média baixa podem ser gravemente penalizadas por não implementarem controles empresariais em seus lares, o que representa uma desproporcionalidade social inaceitável.

Mais grave ainda, a presunção criada judicialmente pode comprometer seriamente o direito constitucional de defesa do empregador, violando o devido processo legal. Esta situação coloca em risco não apenas os direitos individuais, mas a própria estrutura do sistema jurídico brasileiro, baseado na supremacia da Constituição e na estrita observância dos limites legais.

A proteção do trabalhador doméstico, objetivo absolutamente louvável e constitucionalmente respaldado, não pode ser alcançada mediante violação de outros princípios constitucionais igualmente importantes. O equilíbrio entre proteção social e segurança jurídica deve ser buscado dentro dos marcos legais estabelecidos, jamais através de criações jurisprudenciais que extrapolem os limites da atividade jurisdicional.

O Direito do Trabalho, ramo já marcado pela proteção ao hipossuficiente, não pode servir de pretexto para violações constitucionais que, a longo prazo, comprometem a própria efetividade da proteção trabalhista ao gerar insegurança jurídica e resistência social às normas trabalhistas. A criação de direitos por via jurisdicional, sem respaldo legal, pode gerar efeito contrário ao pretendido, alimentando a informalidade e a resistência à contratação regular de trabalhadores domésticos.

É imperioso que o próprio TST revise imediatamente esta tese, em observância aos princípios constitucionais violados. A aplicação das regras ordinárias de distribuição do ônus probatório, cabendo ao empregado a prova dos fatos constitutivos de seu direito, conforme estabelece o Código de Processo Civil, deve ser restaurada. É fundamental respeitar as especificidades do trabalho doméstico, reconhecendo sua natureza peculiar, sem criar obrigações inexistentes na legislação.

Caso o Poder Legislativo entenda necessária a criação de regras específicas para controle de jornada doméstica, que o faça através do processo legislativo adequado, respeitando o debate democrático e a participação social. Esta é a forma correta e constitucional de evolução do ordenamento jurídico.

A comunidade jurídica deve mobilizar-se para questionar este entendimento equivocado, seja por meio de recursos constitucionais, seja através do debate acadêmico, visando à restauração da segurança jurídica e do respeito aos limites constitucionais da atividade jurisdicional. O Estado Democrático de Direito exige que todos os poderes, inclusive o Judiciário, respeitem rigorosamente os limites constitucionais de sua atuação.

A decisão do TST no Tema 122 representa um perigoso precedente de extrapolação dos limites jurisdicionais que pode abrir caminho para outras violações constitucionais. É responsabilidade de todos os operadores do direito zelar pela supremacia da Constituição e pela manutenção do equilíbrio entre os poderes, fundamentos essenciais da democracia brasileira.

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