A Divulgação do Relatório Policial e o Novo Precedente no Brasil

A divulgação, pelo Supremo Tribunal Federal, de um relatório elaborado pela Polícia Federal, identificado como RELATÓRIO FINAL Nº 3305694/2025 2025.0079964-CGCINT/DIP/PF, relacionado à apuração de possíveis crimes previstos nos artigos 344 (Coação no Curso do Processo) e 359-L (Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito) do Código Penal, levanta preocupações ao estabelecer um precedente incomum no sistema de persecução penal brasileiro. Isso ocorre especialmente porque, no Brasil, o sigilo dos inquéritos policiais é regra, sobretudo em situações que envolvem dados sensíveis relacionados à privacidade e à vida íntima dos investigados.

Simulação de um código hash – Foto de Daniel Joshua na Unsplash

É importante salientar que as provas produzidas pela polícia não vinculam o Ministério Público, já que são alicerçadas em interpretações subjetivas das autoridades policiais. Apesar de a polícia possuir legitimidade para colher provas penais com base em critérios de oportunidade e conveniência, tais atos devem observar rigorosamente o arcabouço das normas infraconstitucionais e o entendimento consolidado dos Tribunais Superiores para garantir que os elementos probatórios sejam válidos.

A divulgação inesperada desse relatório policial é ainda mais preocupante, considerando que as evidências apresentadas foram diretamente extraídas do aparelho celular do presidente Jair Bolsonaro. Essas informações telemáticas, utilizadas como base probatória, foram coletadas por delegados da Polícia Federal, em aparente descumprimento do disposto no artigo 159 do Código de Processo Penal, que exige que “o exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador de diploma de curso superior”.

Embora a jurisprudência permita que, no momento do cumprimento de um mandado de busca e apreensão, os policiais responsáveis pela apreensão possam realizar uma verificação preliminar e coleta inicial de dados em dispositivos eletrônicos, tal medida possui caráter excepcional e preliminar. O uso desses dados para subsidiar um relatório da autoridade policial, em etapas mais avançadas da investigação, deve obrigatoriamente ser realizado por peritos oficiais, conforme ordena o artigo 159 do CPP.

Ricardo Pinheiro.

No julgamento do RHC 239805 AgR, Relator: Ministro Cristiano Zanin, Primeira Turma, julgado em 07/05/2024, o Supremo Tribunal Federal consolidou esse entendimento. De acordo com a decisão, os atos preliminares de acesso e levantamento de informações podem ser conduzidos por policiais ou delegados, mas qualquer etapa posterior, que envolva a extração completa de dados e sua utilização formal como prova válida, deve ser realizada por peritos oficiais, em estrita observância às normas processuais.

O reconhecimento e a coleta do material apreendido, entre outros procedimentos preliminares, são atos que antecedem a perícia técnica oficial prevista no art. 159 do CPP e, portanto, prescindem da participação de um perito oficial, como ocorreu no caso sob exame. Por essa razão, não se há falar em quebra da cadeia de custódia ou manuseio ilegal do aparelho celular por parte do agente de polícia

De forma ampla, é importante ressaltar que mensagens de aplicativos como o WhatsApp são altamente suscetíveis à manipulação por meio de ferramentas de inteligência artificial e programas que podem alterar o teor ou o contexto de uma conversa de maneira indetectável. Assim, para que as provas apresentadas no relatório tivessem validade legal, era imprescindível a demonstração cabal da cadeia de custódia, bem como a apresentação do código hash. Esses elementos permitem comprovar que os dados não foram manipulados desde o momento da extração até a sua inserção no relatório policial.

Falhas substanciais como essas, em um processo judicial tradicional, poderiam facilmente contaminar toda a investigação, tornando os elementos coletados pela Polícia Federal juridicamente inadequados para sustentar uma ação penal.

Ainda, é pertinente destacar a previsão da Lei nº 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade), cujo artigo 28 tipifica como crime a divulgação de informações privadas que não guardem relação direta com as provas pretendidas, expondo a intimidade, a honra ou a imagem do investigado. Essa prática pode acarretar pena de detenção de 1 a 4 anos.

Um exemplo claro dessa violação é a inclusão, no relatório divulgado, do número de telefone do advogado norte-americano Martin De Luca, que atua na defesa do presidente Donald Trump. Essa informação, que não guarda qualquer conexão com as provas ou com o objeto da investigação, configura uma afronta à privacidade e à vida íntima de um advogado que, até onde se sabe, não está sendo formalmente investigado pela Polícia Federal. A divulgação dessa natureza compromete não apenas direitos individuais, mas também o sigilo protegido no exercício da advocacia, essencial à garantia jurídica e ao contraditório.

Além disso, o artigo 10 da Lei nº 9.296/1996 criminaliza a divulgação de sigilos telemáticos, como mensagens de aplicativos de comunicação, sem autorização judicial ou para finalidades não previstas em lei. Nesse contexto, a revelação de mensagens privadas entre Jair Bolsonaro e terceiros — incluindo seu filho e o pastor Silas Malafaia —, conforme amplamente divulgada pela imprensa, pode configurar uma grave violação a essa norma. Tal conduta não apenas infringe a proteção legal do sigilo telemático, mas também compromete direitos fundamentais relativos à privacidade e à intimidade dos envolvidos.

O caso da divulgação de um relatório policial que, até o momento, não havia sido submetido ao exame do Procurador-Geral da República, inaugura um precedente preocupante no ordenamento jurídico brasileiro. A situação se agrava ainda mais ao constatar que a extração de dados do celular do ex-presidente não foi realizada por peritos da Polícia Federal, mas sim por delegados, em flagrante descumprimento das boas práticas do sistema acusatório e da legislação processual penal vigente.

A OPINIÃO DOS NOSSOS COLUNISTAS NÃO REFLETE, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DO PORTAL LUPA1 E DEMAIS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO DO GRUPO LUPA1 .

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